Dominar as teclas foi essencial para ter olhos nas pontas dos dedos

29/01/2019   10h03

O estudante tinha 16 anos e cursava o 9º ano do ensino fundamental quando foi atingido no rosto por estilhaços de balas. Ele estava na casa de um amigo que, jurado de morte, foi alvejado na sua frente. Marcos não viu, pois a pólvora que se espalhou pelo ar queimou seus olhos e o deixou com sessenta pedaços de chumbo instalados na cabeça e o desafio de aprender a ver a vida sem poder enxergar.

 

 

No início, veio a preocupação com os pais. “Como eles lidariam comigo cego?”, se perguntava. Depois, experimentou a revolta. Andou estressado com aquela realidade que parecia sem luz. Quebrou um celular para acalmar os nervos e, nesse dia, se deu conta: “Nada disso vai trazer a minha visão de volta!”

 

Até que um dia ele não aguentou mais ficar desacomodado dentro de casa. Só avisou para a família que iria voltar para escola. A mãe ficou bem preocupada. Como o filho ia fazer o caminho até a sala de aula sem poder enxergar? “A verdadeira adaptação só acontece quando você começa a andar só”, foi o que Marcos da Silva, 24 anos, respondeu ao assumir o desafio de andar sempre no escuro, não importava se fosse dia ou noite.

 

Marcos passou, então, a ocupar o tempo livre buscando ferramentas no computador que o ajudassem a se reconectar com o mundo. Entre tentativas e erros, descobriu sua paixão pela informática. Além de ser uma nova forma de se comunicar, a tecnologia se apresentou como uma possível profissão. Foi quando conheceu Raquel, a doce voz feminina de um sintetizador que lê tudo o que está escrito na tela. Se ele não pode ver, Raquel assopra no seu ouvido.

 

São pelas orientações dela que ele se guia enquanto trabalha como assistente técnico no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI).  Há um mês, ele assumiu um contrato temporário na instituição como participante do Programa SENAI de Ações Inclusivas (PSAI), que tem como objetivo capacitar pessoas com deficiência física ou intelectual para torná-las autônomas e preparadas a assumir um posto no mercado de trabalho, de acordo com as suas potencialidades.

 

Marcos tateia o computador e cumpre as tarefas que lhe atribuíram. Para se preparar para o cargo, fez capacitação da Google. Lê e escreve sem ver. Reconhece os companheiros de trabalho pela fala e chega todos os dias ao emprego com a ajuda das pessoas que o orientam a tomar o ônibus certo. Não dá um passo sem a bengala, que substitui o sentido perdido, rastreia o caminho certo e aponta obstáculos no trajeto.

 

Aliás, foi a coragem que levou Marcos a seguir nos estudos e se preparar profissionalmente. Quatro anos depois do acidente, fez um curso de técnico de informática no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). “Antes de perder a visão, eu não pensava em formação profissional, nem sabia mexer no computador. Só entrava nas redes sociais e baixava músicas”, comenta.

 

VIAGENS ANTES IMPENSADAS – Dominar as teclas foi essencial para ter olhos nas pontas dos dedos. Estudou as ferramentas do Windows, decorou onde está cada botão do computador que, em um clique, lhe abriria janelas de interação com as pessoas, permitiria visitar lugares, escrever e-mails, ler livros, mesmo que a visão estivesse apagada.

 

A primeira vez que foi ao SENAI de Taguatinga (DF), outro cego lhe deu as dicas do caminho. Era preciso seguir um muro do lado esquerdo. Ao fim dele, bastava virar e suas mãos encontrariam outro muro do lado direito. Quem não vê, precisa sentir e desenhar na mente um mapa que é feito de árvores, paredes e postes. É preciso decorar o percurso que levará à reconstrução da vida.

 

Só com a força de vontade e os toques da bengala, ele saía de casa, todos os dias, às 4 da manhã, e seguia até a parada de ônibus sob a proteção materna. Eram três transportes até chegar à sala de aula.

 

“O SENAI mudou a minha vida, pois quanto mais cursos você faz, mais a sua mente se abre. Esse emprego me ajudou a acreditar em mim e naquilo que posso fazer”, diz ele sorrindo. “Eu sempre fui muito tímido, mas fazendo os cursos, me virando sozinho, aprendi a ser mais atirado”, explica a inquietação das mãos que expressam o que o olhar já não pode mais.

 

Para Marcos, as dificuldades físicas nunca foram sinônimo de desistência e ele se tornou, no último ano, o primeiro deficiente visual a ser aprendiz em Rede de Computadores, também pelo SENAI. Incrementou o currículo. Aprendeu a configurar redes e a hospedar sites. Com os novos conhecimentos, o próximo passo foi conquistar a vaga de trabalho.

 

Entre um curso e outro, um colega de classe o apresentou àquela que se tornaria sua noiva. Marcos dá um sorriso que aperta os olhos quando fala da moça. O relacionamento é exibido em forma de uma aliança de prata na mão direita. Um dia ele quer se casar, mas, por enquanto, está feliz em só morarem juntos.

 

Os dois nunca se viram. Só se reconhecem pelo tato. Ela também perdeu a visão depois de adulta. Então, se conhecem pelo olhar alheio. A mãe dela a descreve para ele e vice-versa. O cérebro dele, sem enxergar há quase uma década, já não associa certos detalhes à fisionomia de uma pessoa, mas uma certeza ele tem: “É complicado explicar, mas só sei que ela é muito bonita!”.

 

FUTURO – Com a mesma alegria, ele fala do futuro. Marcos ainda tem muitos planos: quer criar um projeto para ensinar informática a outros deficientes; deseja dividir o que sabe com quem compartilha a mesma necessidade. Sabe que para superar a falta de visão, só mesmo os estudos e a determinação. “O mercado para quem enxerga está complicado, imagina para a gente com deficiência…”, reflete.

 

E a mãe dele? Já se acostumou a ter um filho independente? “Ela fica muito orgulhosa de mim. Tanto que se inspirou no meu esforço e decidiu voltar a estudar”, refere-se à mulher que tem 45 anos, cresceu em fazenda e só sabia assinar o próprio nome, até que o filho cego a fez enxergar novas possibilidades.

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